Existe essa
tal brasilidade?
Primeiro
o primeiro: onde começa a história do Brasil?
Os
portugueses assumem como sua, a história em sua colônia americana até 7 de
setembro de 1822. Nós, brasileiros, começamos a absorver a história do país
exatamente na órbita curta dos últimos meses do século XV. Mais precisamente o
dia 22 de abril de 1500.
Do ponto
de vista historiográfico, ambos estão certos e cabe aqui uma reflexão pouco
feita: há um lapso de “brasilianismo” em todo o século XVI e parte do XVII. Até
1822 é história de Portugal, do Brasil ou ambos? Bom, isso importa menos no
caminho da busca da brasilidade.
Veja bem,
o sentimento de brasilidade, aparece de maneira tímida somente no século XIX.
Somente no primeiro giro da roda republicana, começamos a ver arroubos de
sentimento nacional. Mas, reflitamos sobre sentimento de brasilidade. Como se
dá esse sentimento?
O ano é
1889. 18 meses antes, a princesa Isabel, monarca brasileira, representando o
irmão imperador que cuidava da saúde na Itália, num movimento desesperado em
ainda manter de pé a monarquia brasileira cambaleante e ameaçada, assina a
carta de libertação dos escravos. Como sabemos, não resultou no objetivo
político de agradar a grupos abolicionistas e a carta foi, para seu propósito específico,
um tímido voo de galinha na questão escravista.
O Brasil
nasce de fato ambíguo. No topo, elites de grupos nacionalistas buscando um
sentimento nacional (uma grande desculpa por tomada de poder) "lutam"
pela independência, logo abaixo uma pequena população livre, pobre e já mestiça
que goza de algum privilégio dada a origem de alguma linhagem europeia em seus
traços físicos; povos indígenas nativos que em milênios jamais refletiam sobre o
passado, contado apenas em lendas narradas ao pé de fogueira, angustiados com o
futuro e cada vez mais acuados; e num outro canto, representando a maioria da
população do país, negros, recém libertados que ainda tentavam cicatrizar as
enormes e profundas feridas dos quase 350 anos de açoites, estupros,
assassinatos, privações e massacres que sofreram nesse tempo, perdidos em lugar
nenhum. Não eram mais africanos e nem brasileiros. Como um negro liberto se
sentiria "brasileiro"?
O negro
brasileiro tem ou poderia ter todos os motivos do mundo para odiar essa terra. Escravidão,
desprezo, desdém e tolerância prática. Essa é a ordem cronológica simplificada.
De 13 de
maio de 1888 até 5 de outubro de 1988, paira a marca de um século de profundas
e rápidas mudanças nesse país, mas esse sentimento de brasilidade, se é que
existe, insisto, precisa ser refletido.
Apenas
dois anos antes da assinatura da nossa última constituição (e lá se vão 7), em
3 de setembro de 1986, segundo um texto de um jornal religioso chamado Correio
Fraterno (ABC), o ex-escravo nomeado aqui chegando de Valdomiro Silva, o último
escravo que ainda vivia no Brasil, morre aos 121 anos. Tomemos Valdomiro como
nosso personagem narrativo por um momento mesmo como licença poética. Viveu em
terra brasilis exatos 104 anos. Chegou aqui num porão de um navio negreiro em
1882. Recebeu um novo nome, marca de ferro quente, grilhões, bridões, arreios, correntes,
açoites e muito trabalho.
Valdomiro
viu a escravidão ser abolida, viu o abandono e o desprezo, mas teve a sorte de
ter um branco como amigo quase irmão que o ajudou na jornada da vida.
Valdomiro
viu a popularização dos bondes, das linhas telefônicas, das antenas de rádio;
viu navios de madeira que por séculos trouxeram seus pares para esse continente
serem sumariamente substituídos por barcos fumegantes de metal; viu as notícias
do voo de Santos Dumont na efervescente Paris de 1906 e viu também nossos
primeiros protestos sindicais.
Valdomiro sentiu na pele a "invasão" branca europeia substituta
que trouxe junto o racismo sentimental que somado à já existente discriminação de
classe, formam o racismo institucional velado atual; viu velhos oficiais
brancos embarcando para dar suporte médico e salvar vidas à tríplice intente na
primeira guerra e viu jovens soldados rasos mestiços pobres embarcando para a
morte no coração da segunda. Ouviu notícias de um novo tipo de bomba que explodiu
sobre o Japão. Viu chegar a TV, os veículos automotores e todo tipo de
geringonça elétrica. Viu na TV ainda em preto e branco o homem chegar à lua e
um pouco antes a construção da nova capital do país. Valdomiro pôde ter visto na
TV já em cores, o laranja intenso e frenético das chamas das Napalm sobre as
florestas do Vietnã como também o pulo histórico do negro João do Pulo, que
estabeleceu um registro que duraria 10 anos a ser superado. Deve ter ouvido
também o relato do funcionário do hospital que atendeu João e seus dois
acompanhantes do carro no acidente que lhe custou uma perna e a vida aos outros
ou ouvir quando a polícia dizia: ”tem três camaradas no camburão da polícia em
estado muito grave. Querem saber se devem tirá-los do camburão ou esperar
morrer”. Sorte de João ser um atleta vencedor ainda no calor das conquistas e
sorte ainda ser de interesse da impressa que lotava o hospital por notícias.
Valdomiro
viu também o futebol nascer, se popularizar e se tornar um referencial nacional
no mundo. Mesmo tendo chegado sob os estalos da chibata num porão negreiro, pôde
ter vibrado com os fogos comemorativos das conquistas dos mundiais de 58, 62 e
70. As três tendo negros e mestiços como protagonistas e um negro como
estandarte e como o melhor ser humano naquela função e o que aparentemente perdura
até hoje. Triste é ver o desinteresse desse estandarte na questão racial.
Enfim.
E quem garante
que Valdomiro não possa ter se juntado ao coro dos torcedores em pranto com o
maracanazo de 1950? Motivo não faltava, pois, o negro Barbosa, goleiro, recebeu
sozinho a injusta a culpa pelo desastre. Teria Valdomiro algum sentimento de
classe? De grupo? De identificação e representatividade? Talvez nunca se
descubra. Talvez tenha chorado apenas pela derrota em si. Eis aqui, se houve, um
sentimento de pertencimento.
Seria o
futebol de fato nosso grande elo brasileirista?
Os mais
de 300 anos de escravidão da maior parte dos habitantes locais condiciona o ser
brasileiro moderno.
Não dá para
amadurecer como sociedade tão rápido assim.
A
brasilidade é um sorriso amarelo. Toda tentativa de criar um sentimento de
unidade, mesmo no futebol, é falsa. "Brasil ame-o ou deixe-o" é um
slogan boboca e sem o menor sentido.
É preciso
refletir sobre nosso resultado de sociedade.
É
inegável que somos um conjunto de pessoas que compartilham o mesmo idioma num
amontoado de sotaques e que esse fator - língua - nos isolou do mundo mesmo
compartilhando mais de 15 000 quilômetros de fronteiras terrestres com
vizinhos.
Devemos
pensar o Brasil de fato como uma república de 130 anos. Começa com o conceito
de negro livre, mas também começa com políticas de branqueamento e eugenia.
Começa
com o governo do alagoano Deodoro da Fonseca chega hoje com o governo de um
paulista que pensa como pensavam os homens na época de Deodoro da Fonseca:
ignorando ou desconhecendo as mazelas de uma complexa sopa social.
Avanços?
Muitos! Retrocessos? Inúmeros. Na conta, prejuízo.
Ser
brasileiro é diferente de se sentir brasileiro, porque esse sentimento de fato
não existe.
Ser
brasileiro é um tecnicismo burocrático. Se sentir brasileiro carece de reflexão
e entendimento.
A brasilidade
precisa ser desenvolvida como nação unida e nesses 130 anos de país, a
sociedade nacional caminhou apenas no sentido de manter a ordem das classes em
seus "devidos" lugares. Os que dominam hoje são os que dominam
sempre. Há nisso vários “brasis”. Cada um ao “gosto” do freguês. Os muros dos condomínios
gritam escandalosamente o determinismo dessas fronteiras internas imaginárias.
O povo
hoje trabalhador, mestiço, é o negro do início da república.
O viver é
o novo trabalho, o trabalho é o novo açoite e o salário e a ração do limite da
sobrevivência.
A polícia
é o novo capitão do mato e como dizia o (arrependido) Lobão, "a favela é a
nova senzala".
Para
finalizar, faça o autoexame: defina seu orgulho de ser brasileiro. Pense nisso!
Em
seguida defina o que é ser brasileiro.
Analise
os resultados com a máxima honestidade possível.
Após
isso, podemos começar a pensar como contar a história do país.