sábado, 12 de outubro de 2019

Existe essa tal brasilidade?


Existe essa tal brasilidade?
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Primeiro o primeiro: onde começa a história do Brasil?

Os portugueses assumem como sua, a história em sua colônia americana até 7 de setembro de 1822. Nós, brasileiros, começamos a absorver a história do país exatamente na órbita curta dos últimos meses do século XV. Mais precisamente o dia 22 de abril de 1500.

Do ponto de vista historiográfico, ambos estão certos e cabe aqui uma reflexão pouco feita: há um lapso de “brasilianismo” em todo o século XVI e parte do XVII. Até 1822 é história de Portugal, do Brasil ou ambos? Bom, isso importa menos no caminho da busca da brasilidade.

Veja bem, o sentimento de brasilidade, aparece de maneira tímida somente no século XIX. Somente no primeiro giro da roda republicana, começamos a ver arroubos de sentimento nacional. Mas, reflitamos sobre sentimento de brasilidade. Como se dá esse sentimento?

O ano é 1889. 18 meses antes, a princesa Isabel, monarca brasileira, representando o irmão imperador que cuidava da saúde na Itália, num movimento desesperado em ainda manter de pé a monarquia brasileira cambaleante e ameaçada, assina a carta de libertação dos escravos. Como sabemos, não resultou no objetivo político de agradar a grupos abolicionistas e a carta foi, para seu propósito específico, um tímido voo de galinha na questão escravista.

O Brasil nasce de fato ambíguo. No topo, elites de grupos nacionalistas buscando um sentimento nacional (uma grande desculpa por tomada de poder) "lutam" pela independência, logo abaixo uma pequena população livre, pobre e já mestiça que goza de algum privilégio dada a origem de alguma linhagem europeia em seus traços físicos; povos indígenas nativos que em milênios jamais refletiam sobre o passado, contado apenas em lendas narradas ao pé de fogueira, angustiados com o futuro e cada vez mais acuados; e num outro canto, representando a maioria da população do país, negros, recém libertados que ainda tentavam cicatrizar as enormes e profundas feridas dos quase 350 anos de açoites, estupros, assassinatos, privações e massacres que sofreram nesse tempo, perdidos em lugar nenhum. Não eram mais africanos e nem brasileiros. Como um negro liberto se sentiria "brasileiro"?

O negro brasileiro tem ou poderia ter todos os motivos do mundo para odiar essa terra. Escravidão, desprezo, desdém e tolerância prática. Essa é a ordem cronológica simplificada.

De 13 de maio de 1888 até 5 de outubro de 1988, paira a marca de um século de profundas e rápidas mudanças nesse país, mas esse sentimento de brasilidade, se é que existe, insisto, precisa ser refletido.

Apenas dois anos antes da assinatura da nossa última constituição (e lá se vão 7), em 3 de setembro de 1986, segundo um texto de um jornal religioso chamado Correio Fraterno (ABC), o ex-escravo nomeado aqui chegando de Valdomiro Silva, o último escravo que ainda vivia no Brasil, morre aos 121 anos. Tomemos Valdomiro como nosso personagem narrativo por um momento mesmo como licença poética. Viveu em terra brasilis exatos 104 anos. Chegou aqui num porão de um navio negreiro em 1882. Recebeu um novo nome, marca de ferro quente, grilhões, bridões, arreios, correntes, açoites e muito trabalho.

Valdomiro viu a escravidão ser abolida, viu o abandono e o desprezo, mas teve a sorte de ter um branco como amigo quase irmão que o ajudou na jornada da vida.

Valdomiro viu a popularização dos bondes, das linhas telefônicas, das antenas de rádio; viu navios de madeira que por séculos trouxeram seus pares para esse continente serem sumariamente substituídos por barcos fumegantes de metal; viu as notícias do voo de Santos Dumont na efervescente Paris de 1906 e viu também nossos primeiros protestos sindicais.

Valdomiro sentiu na pele a "invasão" branca europeia substituta que trouxe junto o racismo sentimental que somado à já existente discriminação de classe, formam o racismo institucional velado atual; viu velhos oficiais brancos embarcando para dar suporte médico e salvar vidas à tríplice intente na primeira guerra e viu jovens soldados rasos mestiços pobres embarcando para a morte no coração da segunda. Ouviu notícias de um novo tipo de bomba que explodiu sobre o Japão. Viu chegar a TV, os veículos automotores e todo tipo de geringonça elétrica. Viu na TV ainda em preto e branco o homem chegar à lua e um pouco antes a construção da nova capital do país. Valdomiro pôde ter visto na TV já em cores, o laranja intenso e frenético das chamas das Napalm sobre as florestas do Vietnã como também o pulo histórico do negro João do Pulo, que estabeleceu um registro que duraria 10 anos a ser superado. Deve ter ouvido também o relato do funcionário do hospital que atendeu João e seus dois acompanhantes do carro no acidente que lhe custou uma perna e a vida aos outros ou ouvir quando a polícia dizia: ”tem três camaradas no camburão da polícia em estado muito grave. Querem saber se devem tirá-los do camburão ou esperar morrer”. Sorte de João ser um atleta vencedor ainda no calor das conquistas e sorte ainda ser de interesse da impressa que lotava o hospital por notícias.
Valdomiro viu também o futebol nascer, se popularizar e se tornar um referencial nacional no mundo. Mesmo tendo chegado sob os estalos da chibata num porão negreiro, pôde ter vibrado com os fogos comemorativos das conquistas dos mundiais de 58, 62 e 70. As três tendo negros e mestiços como protagonistas e um negro como estandarte e como o melhor ser humano naquela função e o que aparentemente perdura até hoje. Triste é ver o desinteresse desse estandarte na questão racial. Enfim.

E quem garante que Valdomiro não possa ter se juntado ao coro dos torcedores em pranto com o maracanazo de 1950? Motivo não faltava, pois, o negro Barbosa, goleiro, recebeu sozinho a injusta a culpa pelo desastre. Teria Valdomiro algum sentimento de classe? De grupo? De identificação e representatividade? Talvez nunca se descubra. Talvez tenha chorado apenas pela derrota em si. Eis aqui, se houve, um sentimento de pertencimento.

Seria o futebol de fato nosso grande elo brasileirista?

Os mais de 300 anos de escravidão da maior parte dos habitantes locais condiciona o ser brasileiro moderno.

Não dá para amadurecer como sociedade tão rápido assim.

A brasilidade é um sorriso amarelo. Toda tentativa de criar um sentimento de unidade, mesmo no futebol, é falsa. "Brasil ame-o ou deixe-o" é um slogan boboca e sem o menor sentido.

É preciso refletir sobre nosso resultado de sociedade.

É inegável que somos um conjunto de pessoas que compartilham o mesmo idioma num amontoado de sotaques e que esse fator - língua - nos isolou do mundo mesmo compartilhando mais de 15 000 quilômetros de fronteiras terrestres com vizinhos.

Devemos pensar o Brasil de fato como uma república de 130 anos. Começa com o conceito de negro livre, mas também começa com políticas de branqueamento e eugenia.

Começa com o governo do alagoano Deodoro da Fonseca chega hoje com o governo de um paulista que pensa como pensavam os homens na época de Deodoro da Fonseca: ignorando ou desconhecendo as mazelas de uma complexa sopa social.

Avanços? Muitos! Retrocessos? Inúmeros. Na conta, prejuízo.

Ser brasileiro é diferente de se sentir brasileiro, porque esse sentimento de fato não existe.

Ser brasileiro é um tecnicismo burocrático. Se sentir brasileiro carece de reflexão e entendimento.

A brasilidade precisa ser desenvolvida como nação unida e nesses 130 anos de país, a sociedade nacional caminhou apenas no sentido de manter a ordem das classes em seus "devidos" lugares. Os que dominam hoje são os que dominam sempre. Há nisso vários “brasis”. Cada um ao “gosto” do freguês. Os muros dos condomínios gritam escandalosamente o determinismo dessas fronteiras internas imaginárias.

O povo hoje trabalhador, mestiço, é o negro do início da república.

O viver é o novo trabalho, o trabalho é o novo açoite e o salário e a ração do limite da sobrevivência.

A polícia é o novo capitão do mato e como dizia o (arrependido) Lobão, "a favela é a nova senzala".

Para finalizar, faça o autoexame: defina seu orgulho de ser brasileiro. Pense nisso!

Em seguida defina o que é ser brasileiro.

Analise os resultados com a máxima honestidade possível.

Após isso, podemos começar a pensar como contar a história do país.













domingo, 28 de janeiro de 2018

Professores são descartáveis. Educadores são eternos.

  
Engenheiro! Foi o que respondi ao professor ainda na quarta série quando me perguntou o que queria ser quando adulto. Você é pobre. Esqueça isso! Não é para você. Siga a profissão de seu pai. Foi sua resposta. Aliás, foi uma orientação séria.
    Minha resposta obviamente estava condicionada com o fato de meu pai ser construtor e de enxergar naqueles capacetes brancos algo admirável. Entretanto, aquela orientação dizia que minha condição de existência permitiria no máximo o capacete azul de meu pai, do qual sempre muito me orgulhei e que me trouxe até aqui. Aceitei a condição. Ele era o professor.
    No início da sétima série, já em outro colégio, nas primeiras aulas de Português, houve uma fissura na grossa membrana que envolvia minha existência nesse mundo. A frase “você pode ser o que quiser, mas para isso, é preciso conhecer a ti mesmo” tomou por um momento a função de fórceps e finalizou meu nascimento, já com 12 anos.
    Professor Mauro, filósofo e linguista de fino trato, sabia manejar o fórceps as palavras como poucos. E elas eram reveladoras. Inspiradoras. Eram chaves.
   Citando Freire, explicava como as forças dominantes tendiam a criar círculos de existência rodeados de obstáculos para que grupos dominados aceitassem suas condições e reproduzissem seus pares infinitamente. 
   Não saberia dizer se resultou positivo para todos. No meu caso, entre outras coisas me fiz engenheiro, mas já no andamento do curso, me descobri professor e a cada manhã volto àquela sala de quarta série de chão batido, numa periferia rural do início dos anos 80, para dizer para cada aluno que ele pode ser o que quiser. Até mesmo construtor se desejar.

   Tatuei no fundo da mente o mantra da frase de Rubem Alves que dá título a esse texto.


domingo, 22 de outubro de 2017

TRATO FEITO - EU QUERO ACREDITAR






Quando voltei ao Brasil depois de morar um bom tempo fora, tentei manter alguns hábitos adquiridos no velho mundo e um deles era o de ver o Canal de História. Bom, aqui todos chamam de History Channel. Isso já seria o prelúdio do que eu encontraria.

Pois bem, ao contrário do que passa na Europa, as versões desse canal possuem forte produção nacional e quase não sobra espaço para os programas enlatados Made in America. Obviamente que programas populares como Trato Feito tem seu lugar, porém, o forte é a produção histórica.

É certo que os europeus são fissurados em história já que estamos falando do berço de tudo isso e de milênios de coisas para se orgulhar (e se envergonhar).

No Brasil, imediatamente veio a decepção: o "nosso" Canal de História não passa de um amontoado de programas ruins, quase todos realities, coisas sem sentido e muita, muita coisa sobre extraterrestres.

O History hoje é um canal pago onde sua grade se divide em 1/3 do tempo fazendo propaganda de si mesmo, outro terço falando de história dos EUA de maneira bem rasa e o restante entre Trato Feito, realities e "Ovniologia" (????) ....


Possuem o H2 onde focam mais na produção histórica, mas ainda assim, tudo focado no público dos EUA com dublagem ruim (a dublagem por melhor que seja já é algo negativo) e pauta sem critério claro.

Produtores desses canais chegaram recentemente ao ponto de enganar vários importantes historiados e pensadores brasileiros que agora, sentindo-se enganados, começam a exigir a retirada de seus nomes de um novo programa com bastante carga ideológica com forte objetivo manipulador e distorcido.

Porque essas coisas acontecem aqui?
Eu sinceramente acredito que a educação, o ensino de história no Brasil é chato. É enfadonho e pouco elaborado.
Tudo isso cria frustração nas novas gerações que se decepcionam com esses modelos numa licenciatura. O número de evasão dos cursos, incluindo os federais provam isso. Os alunos entram na esperança de aprender história e acabam atolados num mar de diretrizes educacionais burocráticas onde é mais importante aprender as normas ABNT do que refletir sobre a sociedade colonial brasileira ou tecer críticas sobre os rumos do tratamento à documentação da época da ditadura.

Isso faz com que toda uma geração de historiadores seja negligenciada. O que afeta o estímulo que a população em geral teria em conhecer e produzir história.


É por causa dessa postura, essa falta de criar uma didática mais moderna, jovem e atraente, que programas oportunistas com objetivo ideológico e caráter distorcido como esse Brasil Paralelo ou essa série Guia Politicamente Incorreto do Brasil prosperam e adquirem sucesso. Aliás, somente por ter aberto espaço para essa série, mostra o tipo de atenção que se é dada a história nesse país. Cada um fala o que quer sem a menor preocupação analítica. A questão é pura ideologia.


Confesso que me desanima ver que a maioria dos historiadores desse país, incluindo professores e colegas contemporâneos, produzem pouco ou nada em suas áreas. A maioria investe fortemente em seus currículos para logo se fecharem em sala de aula e não produzirem nada além de textos de cultura geral que em nada contribuem para a produção de história ou estímulo pelo interesse da área.

Incluo-me aí também.